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  • O são joão guerreiro contra o império

     por Maria Morita


    Cêis sabem a história de João Batista?

    Ele era de uma comunidade nômade do rio Jordão, de uma região na altura do monte Carmelo. No período que Jerusalém era ocupada por Roma, rolou muito conflito entre Roma e Constantinopla. A quebrada entre Jerusalém e Constantinopla era de povos nômades e vilas muito pobres num caminho de genocídio.

    Galiléia não é muito longe da região do Monte Carmelo, mas dá uma bela caminhada! 
    Os sacerdotes nômades se recusaram a tributar pra Roma naquele período. As disputas por território com a capital cosmopolita oriental era a \”polarização visível\”, digamos assim… Mas as quebradas entre os centros cosmopolitas mantinham práticas religiosas dos povos dessas regiões. João Batista era uma espécie de sumo sacerdote das práticas do judaísmo antigo em uma comunidade nômade que manteve o carisma contemplativo e nômade da prática daquele povo. Foram chamados \”zelotas\” pelo Império Romano, um jeito de dizer que eram \”radicais\”, \”xiitas\” conspiradores contra Roma, fundamentalistas religiosos loucos do deserto que não aceitavam cobrar taxas do seu povo.

    Os soldados romanos estupravam a quebrada de João Batista até a Galiléia. Cobravam os impostos da capital, tabelavam o preço da remissão dos pecados. 


    Jesus fica conhecido por perdoar os pecados e ser sacrificado pelos pecados da humanidade. Isso é a narrativa bonitinha pra: mataram um dos caras que organizou um motim, uma marcha de 40 dias pelo deserto, com todas as pessoas condenadas à morte e espancamento porque se o preço de não ter jejuado era caro, imagina quanto num devia as putas? Jesus se batizou no Jordão com o zelota João Batista e chegou ocupando Jerusalém, foi acusado de subversão e de \”proibir pagar impostos a César\” (Isso tá em Lucas, cap 22). Jesus também era zelota.

    Nessa mesma narrativa do evangelho de Lucas tem um trecho que descreve as mulheres que sofriam com a condenação \”deste homem que encontramos fazendo subversão e incitando o povo da Galiléia até a não pagar impostos a César!\”, diziam os sumos sacerdotes. E as mulheres choravam e batiam no peito em desespero de saber da condenação de Jesus. A fala de Jesus pra essas mulheres é muito forte, porque ele diz algo como: \”não choreis por mim, filhas da Judeia, chorais por vós mesmas e por seus filhos. Porque vai chegar um dia que felizes daquelas que nunca tiveram filhos, nunca amamentaram, para que possam fugir pras colinas e se esconder. Porque se fazem assim com as árvores jovens, o que não farão com as árvores velhas?\”. 


    É nisso que eu penso quando a Débora Silva (Mães de Maio) diz uma frase \”respeita as mãe!\”. Brisa toda que me pega forte nessa narrativa de Lucas, uma escolha política do que é evangelho cristão, João Batista é uma figura que me põe a desdivinizar a figura de Jesus pra divinizar o que há de menos divino mas é tão sagrado: nóis cum nóis. Não temos que nos tornar deuses para sermos dignos d\’Ele, pois que sejamos capazes de preferir que Marielle estivesse de FATO VIVA ao invés de termos, agora, uma palavra de ordem para \”Marielle Vive\”. 

    Esses dias escutei o Hermes Trismesgistro do Jorge Ben e tem aquela frase \”o que está embaixo é como o que está no alto e o que está no alto é como o que está embaixo\”. João Batista também lembrei que ele teve a cabeça prometida pra Herodes, né? E num é que decapitaram o cara, memo? Antes mesmo da condenação de Jesus. Lembrei de uma coisa do capítulo do Lucas que narra a captura, condenação e execução de Cristo. Nas referências bíblicas desse evangelho de Lucas as passagens sobre a perseguição dos sumos sacerdotes de Roma, os sumos sacerdotes vendidos de Jerusalém contam sobre Jesus indo em todos os templos de toda a quebradeira da Judeia e falando pro povo que a remissão dos pecados não pode estar ligada à pagamento de impostos pra Roma. Então, num dos templos tentam prender Jesus depois que ele fala que o povo é a \”pedra angular\”, ou seja, akela peça da situação que muda o ângulo da porra toda e faz com que o que estava embaixo se vire do avesso pra estar em cima. O povo pira e os sacerdotes não conseguem prender Jesus nessa ocasião porque, segundo Lucas, tinham medo do povo!

    O povo num ia deixar levar Jesus, não! Bom… o ponto é que eu gosto de pensar nessas narrativas pensando em como o cristianismo num tem nada a ver com o cristianismo, sabe? E no entanto, esse desejo de liberdade que é o desejo de continuar vivendo só sendo o que se é, com a dignidadezinha que num é nem que a gente merece, mas a que a gente tem direito, mesmo, é um desejo de viver que aparece na narrativa bíblica, também. Mas que dignidadezinha cretina que se precisa pra ser como se deseja ser. Então esse desejo tem a ver também com o cristianismo, mas o cristianismo não é esse desejo. Só Cristo pode ter sido o verdadeiro e único cristão, afinal… Em várias passagens o Nietzsche solta essa. Na pegada nietzscheana de ficar com o saracutico no saracuteco com o cristianismo histórico, eu tenho me lembrado de referências bíblicas em cada agulhada que o Nietszche dá nessa minha humanidade. É depois de ter pirado nuns aforismos do Humano Demasiado Humano que eu fico pensando nessa fita que eu escrevi sobre a Marielle. Afinal, olha que confortável referenciar-se à figura política de Marielle através de uma palavra de ordem depois de termos, nós, a matado. E quando digo que nós a matamos não é nada pra além de nos responsabilizar como sociedade estruturalmente racista, machista, lgbtqifóbica. E então a gente mata todo dia, né, sociedade?

    Tem um aforismo que me cabe perfeito na sala de aula que é o Aforismo 125, de Gaia Ciência. Aquele famoso pelo escândalo na praça do mercado em que Nietzsche põe um personagem conceitual, O LOUCO, a gritar procurando por Deus e constatando \”Nós o matamos, nós somos seus assassinos! Deus está morto, Deus permanece morto e nós o matamos!\”. Em algum momento uma das perguntas desse homem louco é \”ainda existe um em cima e um embaixo?\”.

    É… Ainda existe… Eu refaço essa pergunta muitas vezes ao longo do ano sempre que dá uma merda com estudante \”indisciplinado\” ou até mesmo depois de terminar um assunto em que falamos de qualquer (qualquer mesmo) conceito que se coloca transcendente na história da filosofia: seja de Platão a Kant, seja dos teóricos do contratualismo (…). 

    Os saberes minoritários: É tudo aquilo que é angular e toda akela peça que se vira do avesso…. veeeeeesh, vira o mundo do avesso pelo ralo! Até engolir as cabeça que tão por cima, né não? 

    São João, São João

    Acende a fogueira da Revolução!   

    Viva São João,   

    Que batiza a revolta naz\’água do Jordão.   

    Ajuda, São João, porfavorzão,   

    nóis fazer rolar as cabeça dos patrão!   

    Amém.   


  • Gilets Jaunes: esperança e desespero

    por Frederico Lyra de Carvalho

    publicado também em: http://uninomade.net/tenda/gilets-jaunes-esperanca-e-desespero/ 

    O cineasta Philip Garrel, como todo grande artista, o parece ter uma boa intuição sobre o momento. No final de uma sessão de Les Amants réguliers, quando demandado para fazer uma comparação entre o momento atual e 1968, o assunto do filme, ele veio com um diagnóstico de época: antes era esperança (éspoir), agora é desespero (désespoir).  

    Uma senhorinha parou para conversar e foi logo me dizendo que este era o terceiro final de semana seguido em que ela subia de Bordeaux para Paris vestindo o colete amarelo. De ônibus um tal trajeto dura em torno de 8 horas. Não procurei saber se havia sido esse o transporte que ela utilizou para se deslocar, mas imagino ser o mais provável, afinal este tem sido o padrão. Vir de trem é caro. Se ela veio de ônibus, isto quer dizer que ela provavelmente também voltou com o mesmo transporte. Só aí já são 16h de trajeto. Além disso podemos imaginar que ela não deve ter ficado menos de 8h na rua. Isto é, este era o terceiro final de semana que ela gastava por inteiro para a insurreição. E ela prometeu voltar. É essa energia política que talvez devesse nos interessar mais e que, de certa forma, está dando as caras na França. Esse deslocamento territórial é um dos aspecto fundamental dos gilets jaunes. Como bem observou Eric Hazan, tirando os militantes de sempre, não encontramos praticamente nenhum parisienses na rua, são os provincianos que invadem e param a cidade. E isto é um fato novo, dessa vez “Paris não é um ator, mas um campo de batalha”. Antes era os dois. E eles só sobem para a capital por esta ser a cede do governo e pela visibilidade que dá: “é onde podemos ser escutados” disse-me um outro. Isto serve para observarmos uma outra novidade, que o que de mais impressionante está acontecendo não se dá em Paris, mas nas provincias. De certa forma, é um fenômeno semelhante ao que aconteceu no brexit, onde ficou claro que havia uma desconexão entre a capital cosmopolita e global e o restante do país. É nas cidades intermediárias, nas rotatórias, nas estradas, em acampamentos espalhados pelo país que novas alianças e relações estão se construíndo. Alguns estão acampados nas estradas e rotundas há semanas. Os bloqueios logísticos tem sido muito mais do que simples bloqueios. Mas nunca é demais frizar são, antes de tudo, bloqueios e os amarelos já bloquearam, entre outras, as fábricas da L\’Oreal, Monsanto, Vuitton e Airbus. Não está claro que o Estado consiga dar conta dessa fragmentação que parece ter tomado um curso acelerado. Ele não tem conseguido controlar de forma efetiva o que acontece em todas as provincias. Paris é a vitrine da insurreição, mas o principal foco parece estar além, espalhado em vários pedaços por toda a França.

    O que não quer dizer que não se passe nada na cidade luz, muito pelo contrário. Nesses dias de sábado de contragem regressiva para o natal, a cidade tem ficado irreconhecível. Parada. O mercado de natal, boa parte das lojas, a maioria dos museus e repartições publicas ficaram fechadas. Vários concertos e peças de teatro foram canceladas, alguns cinemas não abriram. Mas ela não está morta, está com uma outra vida. O “apocalipse” que foi propagandeado durante toda a semana pelas mídias e pelo governo no final se tornou, como era previsível, mais uma fakenews. A propaganda anti-gilets jaunes é intensa, mas não tem funcionado. Embora ele tenha começado logo cedo nos entornos do Arco do Triunfo, foi apenas por volta das 14h que o conflito se generalizou por toda a zona oeste. Uma outra novidade, segundo o mesmo Hazan. Por algumas horas boa parte da cidade era daqueles que por alí tranquilamente andavam. Poucas vezes o flaneur benhaminiano se sentiu tão em casa. Os gilets jaunes passeavam em pequenos grupos pelos quatro cantos da cidade, de um lado para o outro como se a cidade, por aquelas poucas horas, fosse deles. Como se em um improvisado movimento continuo inventassem uma nova maneira de ocupá-la. E tudo isso em silêncio; ouviam se os espectros da cidade e, mais ao fundo, os ecos das explosões. A paisagem sonora era outra. A profanação da rotina da cidade mais visitada do mundo revelou, por alguns instantes, aspectos dela que estavam esquecidos.

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    \”bloqueemos tudo!\”

    O dispositivo repressivo, no entanto, era enorme. O emprego de violência excessiva já virou a regra. 89 mil policiais foram espalhados por todo o território da França – 10 mil em Paris. Até tanques, do mesmo tipo utilisado na destruição da ZAD, deram as caras na capital. Se somarmos os bombeiros e outros destacamentos policiais esse número chega a 120 mil. Um número pouca vezes visto antes. E isso para um número oficial de 136 mil manifestantes – ou seja, quase um para um. No final houveram quase 2mil interpelações e 1700 detenções preventivas, ou seja, mais de 1% dos que foram para as ruas foram detidos, além dos mais de mil feridos, alguns em estado grave, e uma senhora morreu. Um fato importante ocorrido durante a semana que precedeu a manifestação foi a humilhação sofrida pelos liceanos de Mantes-la-Jolie. Em todo canto esta humilhação foi encenada. No dia mesmo houveram várias prisões preventivas ainda nos carro ou ônibus a caminho que chegavam em Paris, a maioria sob a alegação de serem potenciais participantes da manifestação. O caso mais emblemático foi o de Julien Coupat, um dos supostos autores do Comité Invisible, aquele mesmo personagem do caso Tarnac. Ele foi detido junto com um amigo na zona leste da cidade no momento em que entravam em um carro. Desde o primeiro ato amarelo, a represão tem batido todos os recordes na quantidade de uso de munições, especialmente nas granadas e no gás lacrimogêneo. Embora o dispositivo repressivo tenha, de certa maneira, conseguido segurar e proteger a fortaleza que se tornou Paris, a cidade ficou parada por um dia. Passou longe de qualquer normalidade. E dessa vez a insurreição se espalhou por outros locais da cidades. Não está claro se o Estado tem como seguir com essa política repressiva atual. Ele parece estar chegando no seu limite do uso de pessoal disponível e de eficiencia dessa tática. Um CRS (tropa de choque) deu uma entrevista para o L’Humanité dizendo que preferia tirar uma licença por motivo de doença do que estar do lado errado da barricada, e deixou no ar o fato de que outros colegas talvez tivessem feito o mesmo. Outro sugeriu que depois dos gilets jaunes, viriam os gilets bleus. Mas nunca é demais lembrar que a substituição do Exército pelos CRS é recente, ela data apenas do final da segunda guerra mundial. O dia 08 foi, de certa forma, menos conflituoso, houveram menos barricadas e menos incêndios que o dia 01. Os partidos e algumas organizações mais tradicionais estavam lá em boa quantidade, mas ficaram do outro lado da cidade. Nem todos ainda entenderam este novo papel complementar de retaguarda de um movimento difuso e autônomo. 

    Crianças desenham o que vêm e ouvem na televisão, alguma brincam de gilets jaunes nas escolas. Este é o assunto dominante das conversas no metrô e nas salas de espera. Pela primeira vez a violência dos manifestantes é tolerada por aqueles que não saem à rua ou aqueles que saíram mas não partem para a ação direta. Fato novo que a mídia não tem conseguido dobrar. Um dos fatores mais importantes é que aqueles que tentaram se autoproclamar líderes ou representantes do movimento foram desautorizados e quase que imediatamente destituídos nas suas intenções mesmo. Não é para repetir isto que tantos vestem o colete amarelo. A auto-organização absoluta é que reina. Além disso, um dos eixos fundamentais das demandas das ruas é a cobrança pela efetivação do conteúdo do ideário de cidadão republicano. Pede-se um basta no formalismo retórico que esse discurso se tornou. A principal demanda, no fundo, é por justiça social. A extrema direita, embora presente, parece até aqui residual e inoperante. O teor social das demandas tem os afastado. E essa impressão foi reforçada com uma enquete publicada no Le Monde, onde, se por um lado, aparecem temas nacionais, os temas xenófobos não dão as caras. É nessa linha tênue que vão se dar as coisas. O que é uma luta nacional de massas em um país impérial, uma das mais importantes economias do mundo, em plena decomposição da globalização?

    Com efeito, é difícil prever o que se seguirá. Mas o certo é que Macron já foi derrotado na rua pouco menos de um mês depois da apoteose geopolítica que foi comemoração aos 100 anos do amistício da Primeira Guerra Mundial. O discurso que ele deu atestou isso. Como nos disse um senhor na rua: “chega de sentir medo sozinho, agora eles também vão ter que sentir medo, vamos mostrar do que somos capazes”. Que foi respondido por um CRS sem maiores arrodeios, olhos nos olhos com um outro manifestante: “se você quiser ficar vivo, fique em casa”. Tudo pode acontecer, inclusive nada. O que se passa é que nesse explosivo tempo presente que esmaga o horizonte com um peso infernal sobre todos os indivíduos, não há como projetar algo para além. O que resta é a ambiguidade da improvisação. De fato este interregno temporal é vivido como um pesadelo por todos. O cineasta Philip Garrel, como todo grande artista, o parece ter uma boa intuição sobre o momento. No final de uma sessão de Les Amants réguliers, quando demandado para fazer uma comparação entre o momento atual e 1968, o assunto do filme, ele veio com um diagnóstico de época: antes era esperança (éspoir), agora é desespero (désespoir).  

  • Assistimos à uma insurreição horizontal na França?

    Por Juan Pablo Pallamar (pesquisador da Universidade de Paris)

    em  colaboração com Ramon Szermeta.

     

     

    No sábado, 17 de novembro de 2018, iniciou-se o poderoso movimento contra as reformas fiscais do governo de Emmanuel Macron, batizado de “gilets jaunes”, os coletes amarelos. Trata-se de pessoas entre 30 e 50 anos, trabalhadores, considerável número ganha um salário mínimo. São na maioria casados, com filhos, com algum desempregado no núcleo familiar, usam os serviços sociais do estado e compõem a parte urbana da população que vive na periferia das grandes cidades, e são também franceses que vem das províncias do interior. Um grande volume dos manifestantes são também pessoas aposentadas. Muitos dos coletes amarelos não tinham participado antes em manifestações e se identificam como abstencionistas, ou seja, não votaram em ninguém nas últimas eleições.

    Genealogia dos Coletes Amarelos

    Em maio deste ano, Priscilla Ludosky, francesa, colocou nas redes sociais uma petição contra a taxa dos combustíveis anunciada pelo governo de Emmanuel Macron, no marco de uma vontade ecológica do país, mas também com o propósito de reequilibrar o orçamento nacional depois da supressão, no ano passado, do Imposto sobre as Grandes Fortunas (ISF, sua sigla em francês). Em outubro a petição registrava mais de 200 mil assinaturas e ao final de novembro superou um milhão.[1]

    Ainda no início de outubro, Eric Drouet e Bruno Lefèvre, dois motoristas da periferia leste de Paris, fazem um chamado pelo Facebook para uma manifestação no dia 17 de novembro: o objetivo é o bloqueio da periferia de Paris, fechando uma estrada vital para a circulação dos transportes privados da metrópole. A convocação feita um mês antes viralizou pelas redes sociais, sem a atenção da imprensa e nem do mundo político. Nos dias prévios, o governo tenta descreditar o movimento acusando-lhe de extrema-direita.

    No primeiro sábado de manifestações o movimento consegue bloquear muitas estradas no país. Carros e caminhões são impedidos de circular, desatando um dia de muita tensão social. Inclusive, são registradas algumas mortes de manifestantes atropelados por carros que tentaram romper os bloqueios. Ainda assim, o governo não só manteve sua posição, como seguiu ignorando o movimento. A partir daí, os protestos continuaram por todos os dias da semana nas estradas francesas. Os estoques dos supermercados não pareciam estar afetados e pelos olhos da imprensa o país seguia normalmente.

    No entanto, considerando a jornada de 17 de novembro como uma primeira vitória, os coletes amarelos não param e convocam a população para nova manifestação no sábado seguinte, agora nos Campos Elíseos da cidade de Paris. O governo manteve sua posição e sua indiferença. O protesto, inclusive, não foi autorizado nesse lugar simbólico.

    Pela manhã do sábado de 24 de novembro, milhares de pessoas já estão nos Campos Elíseos. Com a manifestação não autorizada, a polícia começa a dispersão das pessoas com gases e carros de jatos d’água. O resultado foi o contrário do esperado.

    Manifestantes se rebelam, sem lideranças, contra as forças da ordem. Em poucos minutos, uma das mais simbólicas avenidas da França – por onde marcharam as tropas nazistas de ocupação e também por onde desceram depois as tropas livres da França após a “grande guerra” – transformou-se em campo de enfrentamento aberto. Bombas lacrimogêneas, bombas de ruído, matracas, pedras, materiais de construção, cadeiras de restaurante, barricadas e carros queimados incendiaram os bairros da elite francesa. O bairro onde também se situa o palácio de governo da presidência da República, L’Élysée.

     

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    Chega a violência

    O resultado foi caótico. A imprensa rapidamente mobilizou a categoria moral da “violência”[2] para julgar os acontecimentos sócio-políticos desse dia, sob a ideia dos “violentos contra os violentados” e das “pessoas favoráveis a violência versus as pessoas contrarias a violência”. A mesma fórmula foi disseminada pelo governo Macron.

    Foi uma jornada de violência? Certamente, mas foi também um dia de profunda cólera popular contra o governo e especialmente contra Emanuel Macron. E mesmo assim o presidente decidiu não falar. Guardou silêncio e esperou até terça-feira para publicamente se dirigir ao país. Nos mais de 50 minutos de discurso sob a transição ecológica, ele proferiu apenas uma vez a palavra “coletes amarelos” e duas vezes a palavra “manifestações”. Centrou-se assim nas metas ecológicas do governo, reafirmando a vontade de manter suas posições.[3] De lá, Macron partiu para Argentina, na reunião do G20. Os coletes amarelos por sua vez, insatisfeitos e frustrados, reforçam as mobilizações e seu divórcio com o governo.

    Na terceira semana, os coletes amarelos já contavam com três quartos de apoio da opinião pública francesa, segundo as pesquisas.[4] Apesar da violência e da contra campanha da grande imprensa, a indiferença do governo galvanizou o apoio popular dos franceses com o movimento. O terceiro ato, sábado 1º de dezembro, marcou não apenas a fratura social entre as elites governantes e midiáticas, mas revelou o povo heterogêneo, diverso e inclusive contraditório. A rebelião se aprofundou e se estendeu. Não eram só as estradas, não era só os Campos Elíseos, com mais violência e força. Agora também no centro de muitas cidades do país irrompiam conflitos, fogo e protestos. A jornada vestiu a roupa da insurreição simbolizada na tomada e depredação do Arco do Triunfo, o monumento fundacional da França Livre do pós-guerra.

    “Nem ultradireita, nem ultraesquerda: o ultrapovo”.[5] Black blocs, ultranacionalistas, trabalhadores e aposentados, mas, sobretudo coletes amarelos convergiram, sem pauta clara, nem diálogo, nem política comum, levando a política francesa a um novo ciclo histórico. Não querem nem um dos partidos políticos atuais entre eles, não querem sindicatos, mas há uma ampla diversidade de pensamentos e objetivos que tornam complexa a leitura política de quem eles são e de qual pode ser o resultado político do êxito do movimento. O qual é, talvez, o ponto que mais preocupa a elite francesa.

    O que começou em protesto contra a reforma ecológica do governo, denunciada como uma ecologia de elite, uma falsa-ecologia paga pelos contribuintes médios e pobres, foi reforçado no fato de Macron ter eliminado o ISF logo no início de seu mandato, favorecendo as grandes fortunas da França, e hoje, as classes populares trabalhadoras pagam mais taxas sobre os hidrocarbonetos, num quadro geral de corte governamental dos transportes públicos e dos serviços sociais.

     

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    O desastre do governo frente ao ritmo da crise

    Emmanuel Macron volta da Argentina. No Arco do Triunfo saúda as polícias e, espontaneamente, de novo, dezenas de pessoas dando conta da sua presença, gritam contra ele: demissão, demissão. Desta vez não temos a atitude do Macron de antes do G20, nem do Macron durante os encontros com lideranças mundiais. Desta vez, o rosto do presidente fica fechado, grave, sério.

    Foi necessário passar três semanas para que no dia 03 de dezembro, o governo fizesse um gesto. Um gesto que, no meio de debates virulentos entre os partidos, os sindicatos e mesmo entre os coletes amarelos, que começam a ser convidados aos estúdios de televisão, ficou deslocado, atrasado. O governo decide congelar a taxa sobre os combustíveis, mas parece ser tarde. Nas redes sociais, nos programas de televisão, já se fala de outras reivindicações, de uma dissolução do parlamento e de novas eleições, inclusive da demissão de Macron e de uma constituinte.

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    Haverá uma convergência dos movimentos sociais?

    Por outra parte, o movimento não conta ainda com a participação decisiva de jovens abaixo os 30 anos. Apenas na terceira semana, os estudantes secundaristas saíram para as ruas. Em muitas cidades da França como, por exemplo, na periferia de Paris e em cidades como Sant-Étienne e Clermont-Ferrand, que ficam no centro do país, estabelecimentos educativos, escolas e liceus, foram tomados ou bloqueados por barricadas ou simplesmente por atos que terminaram em enfrentamentos similares aos recentes. É outro movimento social. Tem objetivos setoriais, relativos a educação, a seu financiamento, ao acesso a universidade e a oposição frente as reformas do governo no plano educacional. Ainda assim, a pauta dos estudantes toma nova forca com a onda nacional gatilhada pelos coletes amarelos e há então possibilidade de convergência. O mesmo acontece com os sindicatos, os movimentos dos trabalhadores das ferrovias que no primeiro semestre tinham realizado uma greve de quase seis meses e com os trabalhadores da saúde que parecem se fortalecer neste novo cenário social e político que o povo francês está criando.

    Este movimento, inclusive deve estar sendo atentamente monitorado pelas autoridades dos outros países da Comunidade Europeia. Durante essas três semanas de mobilizações, tem se registrado em menor escala protestos de coletes amarelos na Bélgica, Alemanha, Sérvia e Holanda, o qual abre pela primeira vez a possibilidade de futuros cenários de convergência social ao nível regional, a escada europeia.[6] Trata-se assim de um movimento que pode se estender além do território nacional, pois é também uma frustração social de massas que abre um novo espaço popular de disputa política no qual ainda está tudo por se fazer.

     

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    Macron fraturou o contrato social francês

    Parece que nada que o governo Macron fizer nos próximos dias poderá distensionar o clima de fratura nacional entre elites e trabalhadores que está hoje lavrado. Depois de anunciar o congelamento da taxa dos combustíveis e algumas horas depois ao reafirmar a anulação definitiva da taxa, o Primeiro-Ministro, com baixa presença da imprensa e em silêncio, se dirigiu durante a noite para a cidade de Puy-em-Velay (no centro da Franca) com a finalidade de visitar o prédio regional do governo que foi inteiramente queimado pelos manifestantes no sábado anterior e foi recebido pelos funcionários locais e a polícia, numa operação discreta. Péssima ideia. Um grupo de moradores percebendo sua presença, manifestou-se com insultos e exigências de renuncia. Pego de supressa, Macron decide regressar de imediato a Paris, num comboio de apressados carros de janelas pretas.

    Macron aparenta ter poucas saídas frente a uma pressão que sugere se emergir tanto da política econômica de seu governo quebrando definitivamente o contrato social francês que vem sendo agredido por seus antecessores, como de uma arrogância contra os setores populares (majoritários) que foi denunciada reiteradamente durante as últimas semanas. Assim, um novo sábado de protestos está sendo convocado pelo movimento e o discurso do governo e da imprensa está orientado a atiçar o medo, a violência e assim tentar dissuadir o máximo de pessoas de participarem das mobilizações. Será um sábado chave para Macron que já anunciou a mobilização de um contingente extraordinário de policias (mais de 80 mil agentes). Mas, será também vital para o futuro dos coletes amarelos, dos quais se escuta que não vão renunciar até conseguir seus objetivos em definitivo e irão além da anulação da taxa aos combustíveis, que já conseguiram esta semana.[7] Será um fim de semana decisivo para um movimento que não tem e não quer lideranças. Agora eles só querem se entender diretamente com o Presidente da República.

     

    [1] Aline LECLERC, « Priscilla Ludosky, porte-parole des « gilets jaunes » : « Ce n’est qu’un premier rendez-vous, on en attend d’autres » », 28 novembre 2018, https://www.lemonde.fr/societe/article/2018/11/28/priscilla-ludosky-porte-parole-des-gilets-jaunes-ce-n-est-qu-un-premier-rendez-vous-on-en-attend-d-autres_5390007_3224.html.

    [2] Laurent MUCCHIELLI, « Comment analyser sociologiquement la colère des Gilets Jaunes? », Club de Mediapart, consulté le 6 décembre 2018, https://blogs.mediapart.fr/laurent-mucchielli/blog/041218/comment-analyser-sociologiquement-la-colere-des-gilets-jaunes-0.

    [3] Emmanuel. MACRON, « Discours de Macron sur l’écologie trois jours après les évennements 24 novembre à Paris. », 27 novembre 2018, https://www.youtube.com/watch?v=UKfHm58PujQ.

    [4] Bernard MORVAN, « Gilets jaunes. Les analyses de Sandra sont plus vivantes que celles de Jeanne Emmanuelle », BREIZH-INFO.bzh (blog), 29 novembre 2018, https://www.breizh-info.com/2018/11/29/106822/gilets-jaunes-macron-hutin.

    [5] Alain BAUER, « «Gilets jaunes: l’ultrapeuple est de retour» », L’Opinion, 2 décembre 2018, https://www.lopinion.fr/edition/politique/gilets-jaunes-l-ultrapeuple-est-retour-l-analyse-d-alain-bauer-170562.

    [6] Emma DONADA, « D’autres pays d’Europe ont-il leur mouvement des gilets jaunes ? », Libération.fr, 7 décembre 2018, https://www.liberation.fr/checknews/2018/12/07/d-autres-pays-d-europe-ont-il-leur-mouvement-des-gilets-jaunes_1695931.

    [7] Robert JOUMARD, « Analyse des revendications des Gilets jaunes », Club de Mediapart, consulté le 6 décembre 2018, https://blogs.mediapart.fr/robert-joumard/blog/051218/analyse-des-revendications-des-gilets-jaunes.

  • \”as elites falam do fim do mundo, nós do fim dos mês\”. Notas sobre os Gilets Jaunes

     

     

    Frederico Lyra de Carvalho

     

    Nos sábados 17 e 24 de novembro e no 01 de dezembro ocorreram três grandes manifestações na França, todas as três chamadas/encabeças/encarnadas por um novo movimento: o gilets jaunes. Até aqui foi o primeiro movimento a fazer Macron realmente ceder, não teve jeito. De certa forma, ele já foi derrotado. O estopim foi um aumento acima da inflação do preço dos combustíveis, uma pequena faísca que um tecnocrata dessa natureza, com o seu entorno cego, não enxergava possível de ser acessa – ao menos não dessa maneira. Sob a desculpa de ser uma “medida ecológica”, o governo tentou aprovar o aumento e esse foi o mote necessário para a assim chamada “França profunda’’ dar as caras como poucas vezes antes. Eles não querem ser, mais uma vez, os únicos a pagar o preço dos tais “ajustes inevitáveis”: “as elites falam do fim do mundo, nós do fim dos mês”, dizem. Se é verdade não sei, mas fala-se que a manifestação – insurreição? – do dia 01 de dezembro causou a maior desordem que Paris viveu desde Maio de 1968.

    O colete amarelo não é uma escolha à toa e, aparentemente, tem menos à ver com a cor em si do que com o que ele pode simbolizar. Sendo um acessório obrigatório em todo veículo, nada mais prático que abrir a mala do carro e tirar o colete para protestar a partir do aumento dos combustíveis. Era uma identificação que estava à mão. Até para os ciclistas é prático, pois os coletes para andar durante a noite são os mesmo. O que se vê na rua é toda uma série de pautas e demandas que tornou nos dois primeiros dias o motim de certa forma difuso. Mas mesmo isso não é uma análise precisa. Depois de uma período de quase três anos de intensa movimentação na França, nada mais natural do que tudo que foi demandado durante esse tempo reaparecesse na rua. Havia um acumulo de várias pautas precisas. Estorou. No terceiro foi uma palavra de ordem que dominou: Macron demission!

    Desta vez, ao menos, quando estamos falando de manifestações na França é do país todo e não apenas de Paris e algumas outras cidades onde as lutas tem uma constância, como Nantes. Por todo o país vários pedágios foram ocupados e várias estradas bloqueadas. Um terminal de petróleo perto de Rouen foi bloqueado. Lyon, Bordeaux, Marseille, Toulouse, Saint-Etienne todas essas cidades tiveram jornadas como há muito tempo não ocorria. Cidades médias onde rigorosamente nunca acontece nada, como Tours, presenciaram manifestaçốes selvagens de larga dimensão e violência. Em Dijon o prédio da representação regional foi incendiado. Em Pouzin, vila de apenas três mil habitantes, no meio da região de Ardèches, foram ao todo nove horas de embate. A prefeitura foi incendiada em Puy-en-Velay. Na Martinica os gillets jaunes fizeram algo como uma versão local de rolézinho em um shopping center. Os da vila de Commercy clamam em vídeo pela a criação imediata de comités locais, soberanos e autônomos, além de democracia direta, ou seja: Comunas.

    A repressão, no entanto, tem sido forte em todo lugar. Mas foi na periferia, e não em qualquer uma, mas em um département d’autre mer que, para variar, a repressão mostrou toda a sua face. Por enquando, apenas na Ile de la Réunion foi que o exercíto francês foi chamado para intervir. No dia 24 um manifestante perdeu a mão em Paris e no dia 1 um outro perdeu uma mão em Tours, ambos em decorrência do estouro de granadas. No dia 01, era tanta a confusão que quase que faltou contingente policial em Paris. Os CRS (tropa de choque) tiveram que pedir ajuda a outras unidades policiais, além de reclamarem publicamente o fato de que algumas unidades terem que ficar vigiando prédios, ao invés de se movimentarem pela cidade – que é sua especialidade. Segundo o testemunho de um desses choques, em 20 anos ele nunca havia visto algo nessa dimensão. Um amigo manifestante, por outro lado, nunca na vida tinha enfretado a cavalaria, por um instante ele achou que estava em uma viagem no tempo. Ventilou-se até a hipótese de que não haveria contingente suficiente para dar conta no caso de algo ter acontecido em algum banlieue parisiense. Mas, por enquanto, nada ocorreu por aquelas bandas.

    Conta-se que vários dos manifestantes estão fazendo as suas primeiras visitas à capital. Boa parte dos que estão de amarelo nas ruas de Paris não moram na cidade, e nem mesmo nos entornos. Ele estão se deslocando para a capital especialmente para participar dos motins e o principal ponto de encontro tem sido o Arco do Triunfo. Praça que, por alguns instante no dia 1, depois de devidamente expulsarem os CRS de lá, foi ocupada por eles, um feito que foi festejado como uma vitória. Tudo isso tem assustado vários turistas na Champs Elysée que não estão acostumados com chamas de carros, latas de lixo ou diversos entulhos queimados. Muito devido ao fato de a cidade estar com obras por todos os lados, as barricadas tem se multiplicado em uma velocidade e quantidade rara. O matérial já está todo lá, dado de bandeja pela prefeitura. E, muito por conta disso, elas tem sido muito eficientes. Faz-se barricadas em todos os lugares. Queimam-se entulhos (carros, lixeiras, etc) aos montes. E aqui vale ressaltar um outro ponto fundamental: embora não tenham vindo fazer turismo, é quase que como se estivessem passeando pois, não habituados aos roteiros mais comuns das manifestaçốes, os gilets jaunes surgem lá aonde raramente há manifestaçốes em Paris. Além de ocuparem a avenida mais conhecida do mundo, Opéra, jardim de Tullerie, Rivolli, Saint-Lazare, Place de la Concorde, Saint Augustin, Bourse são alguns dos lugares visitados pelos amarelos. As luxuosas Gallerie Lafayette e Printemps foram evacuadas devido ao risco de perturbrações. Mas é verdade que ainda falta um passeio pela Torre Eiffel. Dezenas de saidas do metrô foram simultaneamente fechadas (geralmente são apenas uma ou duas). E nada aconteceu do outro lado da cidade, o palco mais habitual para as manifestações. Como não conhecem bem cidade, eles querem ir lá aonde alguma vez visitaram ou no mínimo ouviram falar. O que faz com que as manifestações sejam percebidas e vividas também por aqueles que lá estão apenas de passagem. Não deixa de ser estranho que, sendo a cidade mais visitada do mundo, isso seja uma novidade. Mas como as manifestações ocorrem lá aonde os turistas nunca vão, eles nem se dão conta de que há algo acontecendo. Enquanto posam para uma foto com o Arco do Triunfo ao fundo, há confronto em Nation. Não tem sido assim dessa vez. Foi um pouco, por exemplo, o que aconteceu há dois anos com o Nuit Débout. Como só se ocupava a praça da Répública à noite, e os turistas só passam por lá de dia, ninguém viu nada.

    Se em um primeiro momento estavam todos, das diversas esquerdas, céticos em relação ao que era aquilo que estava sendo convocado e tomando rapidamente forma, essa percepção de fato mudou. Eles foram ultrapassados pelo movimento, mas não perderam tempo e já se juntaram aos de amarelo. Se no dia 17 havia alguns grupos de extrema-direita na rua, e as esquerdas não estavam muito presents, no dia 24 essa equação já havia sido equilibrada e no dia 1 pode-se dizer que a presença da esquerda era bastante forte na rua. Neste dia a direita se concentrou nos entornos do Arco, e não foi muito além disso. A sua presença e impacto, na rua, vem minguando ao longo dos dias. No fundo, um dos aspectos principais é a total desconexão com qualquer partido e sindicatos estabelecidos. No entanto, em vários lugares, se é verdade que os amarelos davam o tom, eles dividiam os espaços com vários outros manifestantes. Alguns partidos como o NPA conseguiram ter uma boa presença em Toulouse, por exemplo. Mas são os anarquistas que tem sido os resposáveis por uma combinação explosiva de preto (e vermelho) e amarelo. Mas a principal aliança que foi criada na rua até o momento foi a dos giles jaunes com o movimento negro de periferia chamado de Comité Adama. Se é verdade que a maioria dos jaunes são brancos, o tom negro que Assa Traoré, liderança do movimento, e os seus companheiros trazem é outro, um tom que aponta para a possibilidade de expanção ainda maior da coisa toda. Esse encontro talvez seja até aqui o sinal fundamental e ele foi dado na rua.

    A mídia faz o seu papel e tenta a todo custo dissociar os supostos “vândalos”, separando-os dos “civilizados”, dos manifstantes pacifistas. Mas até aqui não tem dado certo e a opinião pública não tem cedido. Prendeu-se um monte de gente na esperança de encontrar aqueles casseurs de sempre. A polícia que esperava prender alguns black blocks, encontrou marceneiros, encanadores, motoristas, pais e mães de família. “Gente comum” que se radicalizou na rua. Pessoas ordinárias, aqueles de quem não se espera esse tipoo de coisa são os que estão quebrando tudo. Muita gente “nati-violência” tem aos poucos cedido e admitindo a possibilidade. Se talvez ainda falte um certo conteúdo, não falta radicalidade e coragem. Mas talvez achar isto seja ainda um raciocínio vindo de uma outra lógica, que não a que tem emergido. Por exemplo, se em um primeiro momento muitos jaunes pediram ajuda ou até mesmo saudavam a polícia, com a falta de aceno positivo destes, além da sua conhecida agressividade, eles logo entenderam que dali não viria nada desse tipo. A mídia estranhou que no segundo e terceiro dia mais gente apareceu com máscaras de gás e melhores equipadas. Como se as pessoas não ganhassem experiência e aprendissem coisas na rua. Atacar policiais, quebrar caixas eletrônicos, queimar carros, essas ações parecem cada vez mais vistas como sendo meios legitímos para destituir Macron. O establishment tenta a todo custo estabelecer um dialogo, mas todo e qualquer representante foi desautorizados. Até o momento, parece não existir a possibilidade da tradicional mediação ou da eleição de algum porta voz do movimento. Entre outras coisas, é contra isso que ele se posiciona.

    Durante esta semana os estudantes aderiram ao movimento e várias escolas foram ocupadas ( e evacuadas), além de ter havido uma importante mobilização dos motoristas de ambulância. No sábado dia 8 o novo ingrediente que deve entrar na sopa é uma marcha pelo clima. Por toda o país tem ocorrido várias assembléias e discussões em preparação para o próximo ato, várias organizações estão se preparando para estar presente. Por outro lado, o presidente disse que este não é mais um movimento apenas político, mas um ataque à République. Sophie Wahnisch comparou a mobilização aos Sans Coulottes, e até Anselm Jappe mostrou entusiasmo. Há um sopro de coletividade que parece ter se reencontrado na rua, e no final do outono, o que não é nada comum.

  • Estamos condenados a sobreviver

    por Alana Moraes

    originalmente publicado em espanhol do La Diaria

    Anotem aí: nós fomos um dos últimos países do mundo a abolir a escravidão. Quase trezentos anos de tortura racista como modo de governo. Dizem que nosso mar é salgado porque foi inundado de lágrimas negras durante tantas travessias. E é verdade. Antes disso, o extermínio da população indígena inaugurou uma nação fundada na violência e no ódio à liberdade. Os europeus nunca compreenderam o corpo nu, o tempo livre, a nossa indisposição com o trabalho assalariado. Eles foram comidos com muita generosidade assim que chegaram ao litoral e esse foi o melhor presente que o concedemos, ainda que eles nunca tenham entendido a honraria do rito. Trouxeram um Deus triste para nos convencer da derrota, da culpa cristã, nos apresentaram as bandeiras e suas guerras. Eles sonhavam com a plantation, o monótono latifúndio, com a monogamia, mas nós fizemos o carnaval.

    O poder nunca teve outra estratégia se não uma política de cercas e extermínio. Porque a vitalidade de nossos quilombos, a persistência de nossas aldeias e suas festas sempre lhes pareciam insuportáveis. Anotem outra vez: a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil. A polícia brasileira é a que mais mata no mundo. O Brasil é o 5º país em morte violentas de mulheres no mundo. O Brasil é o país que mais mata LGBT’s no mundo. Vocês estão anotando? Também somos o país com a maior população de empregadas domésticas do mundo, mulheres negras que ainda limpam os vasos sanitários e alimentam os filhos brancos de uma elite parasita que não sabe falar outra língua que não a do ódio. Não conseguimos fazer a transição do regime ditatorial militar para a democracia; Temos o vício de não olhar para trás, ignoramos todas as feridas abertas. Mas estamos em guerra há 518 anos e adivinhem: nos tornamos especialistas em sobrevivência.

    Quando falamos hoje falamos com a voz do povo negro que sobreviveu a catástrofe da escravidão, nosso holocausto particular. Nossa voz é a voz de mulheres negras cuja fé foi a de criar permanentemente uma vida vivível apesar de toda a miséria e violência. Falamos hoje com a voz dos que foram torturados e desaparecidos durante a ditadura; com a voz dos que continuam desaparecendo nas periferias e favelas, ainda cantamos as canções indígenas que nos lembram que a vida é muito mais: é terra, é floresta, é luta e desejo. Nossa voz é a de Marielle, mulher negra que ousou enfrentar o poder de todas as épocas. É a voz de Lula, um homem pobre que hoje dorme na prisão como tantos outros, mas que foi perigoso o suficiente para ser eliminado do jogo “democrático”. Vamos seguir contando nossas histórias e isso agora é o que temos de mais importante.

    O Bolsonaro é um casamento arranjado entre nosso velho colonialismo com um novo delírio tropical fascista. É um assombração que deixamos para depois. Acabou o tempo das metáforas, agora estamos obrigados a encarar o brasil real e todos os seus fantasmas. Não, as massas não foram enganadas, elas desejaram o fascismo num certo momento – disse o profeta de um outro tempo. Como uma grande vingança, como uma embriaguez coletiva alimentada por frustrações e um grande sentimento de impotência, como uma fuga. Segundo o filósofo xamã indígena yanomami Davi Kopenawa “o pensamento do branco atua como um espírito canibal, um espírito xawarari que se movimenta de forma epidêmica e descontrolada”. Necropolítica, segundo A. Mbembe, não mais a biopolítica do delírio de fazer viver do Estado do bem estar social, mas agora temos uma declaração descarada e obscena do fazer morrer e, portanto, da produção continua de corpos matáveis e zonas de morte.

    Mas Bolsonaro e tantos outros são uma força reativa. Eles não possuem nenhuma nova proposição, eles se negam a pensar e criar um outro mundo. Profetas de uma decadência insistente. A única força importante desse movimento é a impotência e o ressentimento, sabemos bem. Mas o “outro” dessa  necropolítica somos nós. Uma emergente vitapolítica do comum que restitui a possibilidade de criação de uma vida coletiva a partir da relação, fazendo da diferença não mais o bode expiatório da crise do neoliberalismo, mas a força que desloca fronteiras, borrando o que separa a vida da política, fazendo da existência como um todo um terreno de batalha. Estamos muito vivos e é isso que o poder não pode suportar. “Fugitivos de uma civilização que estamos comendo, porque somos fortes e vingativos como o Jabuti”.

    As mães que perdem seus filhos vítimas da violência policial tem fabricado um dos idiomas de conexão mais potentes dos nossos dias: “nossos mortos têm voz!” elas repetem, narrando e atualizando permanentemente a memória dos seus filhos: o que faziam, que música ouviam, o que gostavam de comer. Elas atuam justamente contra a ofensiva do Estado e seus dispositivos autoritários, mostrando que os meninos na verdade são filhos, irmãos, são maridos, faziam parte de uma trama de relacionalidade que também é morta quando eles são mortos – elas são insistentes conectoras, de imagens, de memórias, quase todas adoecem e evocam o mundo dos vivos e dos mortos para expressar sua luta por justiça. A luta de classes hoje tem essa imagem das forças de morte contra as forças de vida – máquinas de desfazer relações contra a tecnoartesania de recompô-las incansavelmente.  É o quilombo contra a pátria branca; É a aldeia contra corpo culpado da plantation decadente; É a favela contra os prédios cheios de muros. Somos nós, mulheres, atravessando todos os medos e colocando nossos corpos na rua. Anotem aí: o medo sempre esteve do lado deles, nós permanecemos com os corpos nus, vivemos destruindo os muros, nossa política é cuidarmos uns dos outros, fazendo festa e criando tumultos. Uma política que assume nossos mortos e nossa interdependência.

    Disse outro dia uma das nossas maiores intelectuais negras, Conceição Evaristo: “Eles combinaram de nos matar, mas nós combinamos de não morrer”. Anotaram tudo? Estamos condenados a sobreviver. Isso é o que temos de mais importante hoje. Viver sempre nos pareceu uma tarefa urgente.

    foto: Henrique Parra

  • É panacéia, a gente tinha em casa

     

    É panacéia, a gente tinha em casa

    por Débora Del Guerra e Livia Ascava

     

    “É Panaceia, a gente tinha em casa. Minha mãe usava muito”, Andreia de Jesus reconhecia a larga e aveludada folha em suas mãos – umas das muitas plantas que Tantinha colheu de seu quintal e distribuiu aos participantes na atividade de abertura do encontro, com o convite para que, de olhos fechados, fizessem o reconhecimento, manejo e escuta. Era ainda um convite para que os corpos-almas-espíritos que chegavam ali das ocupações, dos pontos de resistência de agricultura urbana, da academia, dos movimentos populares, das campanhas e institucionalidades políticas pudessem se encaixar. Um a um e uns aos outros.

    Há duas semanas das eleições, as candidatxs Áurea Carolina, Andreia de Jesus e Rafa Barros participaram do encontro para partilha e bença com “Tantinha e mulheres da agricultura urbana”. Um encontro íntimo, também pela quantidade de pessoas (cerca de 25) mas sobretudo porque tinha história. Era um reencontro de pessoas, de pessoas com sua memória, de pessoas com a terra, com as plantas, abraçado pelas montanhas das Minas Gerais e protegido pela energia da terra e das plantas. Um encontro descolonizado em sua intenção, formato e conteúdo. Ali no Quintal da casa de acolhimento e cura de Tantinha, em Sabará, na região metropolitana de Belo Horizonte.

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    Na mesma semana, em que parte desse grupo havia participado de um encontro de mulheres de ocupações urbanas é importante desvelar a potência de um fazer campanha, num ritmo que se permite desacelerar dentro dos acelerados 40 dias. De um fazer campanha comprometido com manter vivo no corpo o registro que será levado para a institucionalidade. Comprometido com lembrança de onde principiou o desejo de poder, de saber governar: do saber habitar, cuidar, criar e gerar vida.

    As samambaias da mãe de Áurea Carolina, que foram fonte de sustento para a sua família quando o desemprego abriu a garagem da casa para o comércio das plantas que eram cultivadas na casa estavam tão presentes como a imagem de Marielle Franco. Andreia de Jesus lembrava do seu necessário diploma de advogada para ser legitimada e tecer disputas num espaço patriarcal, sem esquecer que o coração de seu conhecimento não pulsava na academia e sim nas experiências cotidianas que seu corpo de mulher, negra, periférica guardavam e continuam produzindo. Rafa Barros se lembrou de um antigo território de plantar que frequentava em sua infância, no qual as plantas se organizavam subversivamente, umas sobre as outras. “Assim seguiremos nós, como territórios de cultivo indisciplinados e por isso potentes”, imaginava.

    Entre uma fala e outra, todos paravam para escutar a conversa entre Tantinha e Raquel, uma mulher de 76 anos que ocupou um terreno ao lado de seu prédio onde mantém uma horta urbana. Era sempre uma encruzilhada, optar por manter a conversa entre os participantes ou entregar-se àquela conversa entre duas mestras. No partilhar de sua história, Tantinha se recorda de um acontecimento ensinador. Em dado momento, suas crianças precisavam de farinha enriquecida e a fila de espera para conseguir o alimento era incompatível com a necessidade de uma mãe ver seus filhos saudáveis. Foi lá, aprendeu a fazer a tal farinha e compartilhou a receita com as demais mães da fila de espera.

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    O que essa história da farinha nos conta é sobre nossa capacidade de cuidar, manter e criar a vida, em comunidade. Autogestão. Mas também nos lembra que há governos que facilitam ou obstruem com maior intensidade que as comunidades se auto organizem, reforçava Debora Antoniazi Del Guerra, articuladora do encontro.

    “Estamos aqui defendendo e sobretudo praticando uma política do cultivo. do cultivo da vida. do cuidado e da auto-gestão. Uma política das plantas, ouvindo-as. reverberando sua beleza. Hortas nas perifas, nas ocupações, nos centros, nas roças. Essa é a esperança concreta de novas vidas. Junho de 2013 foi muito forte em BH (protestos, viaduto, assembleia horizontal, ocupações). Reforçou um cotidiano já rico de criações-lutas, que bebe das tradições e das subversões. Uma não vive sem a outra. Nessas tensões se criam os caminhos de libertação”, falava o professor de ciência política da USP, Jean Tible antes da bença de Tantinha a cada um dos presentes.

    A aventura da percepção de um conhecimento tão ancestral e tão invisibilizado, inaudível no padrão hegemônico do viver patriarcal é a aventura da descolonização. É a resistência da terra, que independente dos governos, governantes dos delírios de dominação da sociedade patriarcal se mantém potente. Uma resistência que corpos-árvores, enraizados nesse saber estão levando aos ambientes institucionais.

  • por uma política da vida vivível

    por uma política da vida vivível

    bárbara lopes

     

    Comida, filhos, casa. Audiências, comissões, leis, tribuna. São dois mundos interligados, mas com um muro que os separa.

    Quando se fala em política, a associação mais imediata é com o mundo de lá. São os espaços de decisão governamental e econômica, majoritariamente ocupado por homens. Para existir, depende do trabalho invisível de uma multidão de mulheres (e também de homens) que preparam sua comida, limpam suas casas, lavam suas roupas, cuidam de suas famílias. No mundo de cá, essas mulheres precisam inventar estratégias de sobrevivência, para dar conta de si, dos seus e daqueles do mundo de lá. Essas estratégias também são política, mas dificilmente são vistas como tal.

     

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    No território comum das ocupações urbanas de moradia, as mulheres começaram a se reconhecer, a identificar, nomear e compartilhar suas práticas. Fazer uma horta para produzir alimentos para a família e para ajudar na renda; sustentar redes que compartilhem o cuidado com as crianças; apoiar umas às outras na lida com casos de violência doméstica. Mas não só: manter viva a sabedoria das ervas medicinais, da cultura do povo negro, as festas e a memória dos que vieram antes. E, além disso, fazer o enfrentamento necessário para se opor às frequentes ameaças de despejo. São as práticas que tornam a vida vivível, mote elaborado pelo Coletivo Etinerancias/Rede Comadre, que possibilitou o encontro realizado no dia 25 de setembro em Belo Horizonte, reunindo mulheres das ocupações Dandara, Rosa Leão, Vitória, Vicentão, Anita, Tomás Balduino e Guarani-Kaiowá. “ Aqui estão mulheres que constroem diversas cidades, essa é memória do mundo que a gente faz, e nos reconhecermos. É estratégico para a vinculação com a politica que há nessas práticas” comenta Débora Del Guerra, que integra  o coletivo.

     

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    São experiências que vêm de longe, das aldeias e quilombos até as comunidades rurais e periferias urbanas. Mas existe algo novo nessa história: uma fresta no muro que separa essas experiências da política institucional. Junto às mulheres das ocupações, estavam as vereadoras Áurea Carolina e Cida Falabella, que compõem a Gabinetona com Bella Gonçalves. A experiência das Muitas, que levou Áurea a ser a vereadora mais votada da cidade, se repete este ano. Ela é candidata a deputada federal. No encontro, estavam ainda as candidatas estaduais Andréia de Jesus e Kênia Ribeiro.

    As três candidatas trazem um sentido muito profundo à ideia de representação política. Andréia expressou isso: “nós estamos hoje desafiando ocupar espaços institucionais, ocupar espaços de decisão. Onde não vão falar por nós, mas nós vamos estar lá falando juntas”. Áurea vem da educação popular, do hip hop e dos movimentos juvenis de periferia. Andréia trabalhou como doméstica, atuou nas Comunidades Eclesiais de Base e na Pastoral Carcerária e tornou-se advogada. Kênia é uma liderança da Ocupação Vicentão e do movimento de camelôs.

     

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    A chegada dessas mulheres negras à política institucional não significa uma saída do mundo da política do cotidiano, mas a incorporação dessa esfera. Provoca um abalo no funcionamento das institucionalidades. “Graças à nossa força é que temos a possibilidade de ter um país em que podemos viver. Só não está pior porque a mulherada mostra que tem outro jeito de viver, de cuidar das pessoas, das crianças, de nós mesmas, das plantas, dos animais, da terra. A política de lavar vasilha, fazer uma horta, que é tão desvalorizada, vai salvar a gente do mal pior. É tirando a cerca, a competição, os muros que colocam entre nós. A Gabinetona é uma ocupação, porque não queremos uma propriedade”, definiu Áurea. Bella, que também é militante das Brigadas Populares, completa: “A Gabinetona é uma experiência de aprendizado, com indígenas, pessoas trans, camelôs, com a juventude negra. Estamos construindo uma forma diferente de fazer um mandato. A Gabinetona transforma a si mesma para transformar a sociedade”.

    O encontro se apoiou em três dimensões fundamentais dessa outra política: o território, o corpo e a memória. Uma política que não paira abstrata, mas que se materializa em espaços, sujeitos e tempos. Uma de suas expressões é a transformação física que a experiência das ocupações causa nas mulheres, visível na superação de quadros de depressão e paralisia. “A gente se cura na coletividade. A ocupação nos cura. Tem de tudo, mas é um grande local de aprendizado. Sou preta, pobre, sapatão e favelada. Minha vida toda é de revolução, sou uma revolução em pessoa. Juntas nós vamos dominar a política e fazer outra”, anunciou Kênia.

     

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    No meio da costura das conversas, a antropóloga Alana Moraes lembrou que, para as mulheres indígenas, duas chaves são importantes: a festa e a guerra. No encontro na ZAP 18 – espaço cultural e educativo no bairro Santa Terezinha – os duros enfrentamentos que passamos não foram esquecidos. A dor que se vive no dia a dia também se vive na política: de um lado, o avanço do conservadorismo e do fascismo expresso na candidatura de Bolsonaro; de outro, o assassinato de Marielle Franco, que também representava essa ocupação da política. “Nosso desafio é grande, mas a morte da Marielle e de tantas companheiras não vai nos calar”, desabafou Vagna, moradora da Ocupação Dandara. “Quando a gente fala que basta, isso incomoda e vem uma reação para tentar nos silenciar. Foi o que aconteceu com a Marielle. São ataques contra nossos corpos individuais e coletivos”, ressaltou Áurea.

    Existe a guerra, mas também existe a festa. A noite foi também de alegria, de troca de olhares e abraços, de mãos dadas e de poesia. Como lembrou Natalia Alves: “A gente luta por causas perdidas, mas por isso mesmo sempre saímos vencedoras”.

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    Fotos por Zi Reis

  • Pensar: uma necessidade contemporânea

    Artigo de Amador Fernández-Savater, publicado no blog Interferências, no periódico El Diário (Espanha), em 21/09/2018. Tradução: Vapor ao Vento.

    Agradecimentos à tradutora anônima do Vapor ao Vento!

    Imagem: Colaborabora

    A catástrofe da sociedade contemporânea é produzir um tipo de relação com o mundo: a posição de espectador e de vítima. Não se trata de oferecer novos conteúdos mas de sair dela.

    Em A Sociedade do Espetáculo, um livro que desde seu aparecimento em 1967 se converteu num clássico (ou seja, um livro sempre contemporâneo), o pensador francês Guy Debord afirma que a verdadeira catástrofe da sociedade moderna não é um acontecimento por vir, nem sequer um processo em marcha (mudança climática etc), mas um tipo de relação com o mundo: a posição de espectador, a subjetividade espectadora.

    Em que sentido? O espectador não entra em contato com o mundo, ele o vê frente a si. De um “mirante” (o espetáculo) que concentra o olhar: centraliza e virtualiza, separa da diversidade de situações concretas que compõem a vida. O espectador é incapaz de pensamento e de ação: limita-se ao juízo exterior (bem/mal), às generalidades e à espera. É uma figura do isolamento e da impotência.

    O espectador de Debord não foi superado nem mesmo pela “interação” das redes sociais: converteu-se simplesmente no “opinador” de nossos dias, que sempre tem algo a dizer sobre o que passa (na tela), porém não tem nenhuma capacidade de mudar nada.

    O espectador é uma categoria abstrata não alguém concreto. É por exemplo qualquer um que se relacione com o mundo opinando sobre os temas midiáticos, sem se dar a si mesmo nenhum meio adequado para pensar ou atuar a respeito. Qualquer de nós pode se colocar na posição de espectador e também qualquer um pode sair. Isso é o que nos interessa agora: Como sair?

     

    O espectador assombrado

    Acaba de aparecer na Argentina La brujería capitalista (Hekht libros), um livro da filósofa Isabelle Stengers e do editor Philippe Pignarre que nos permite avançar nessas questões. Inclusive por caminhos diferentes dos de Guy Debord. Que quero dizer?

    Para Debord, o espectador é um ser enganado e manipulado. Ele explica isso muito claramente, sobretudo, em seus Comentários sobre a sociedade do espetáculo, o livro que escreveu em 1988. Stengers e Pignarre, deslocam essa questão: não se trata de mentiras ou ilusões, mas de “feitiçaria” (1). Ou seja, o problema é que nossa capacidade de atenção está capturada e nossa potencia de pensamento está bloqueada. Portanto, a emancipação não passa por ter ou dizer a Verdade, mas por gerar “contra-feitiçaria”: transformações concretas da atenção, da percepção e da sensibilidade.

    Vejamos isso mais devagar. O espectador é pego uma e outra vez no que os autores chamam “alternativas infernais”. Por exemplo: ou bem levantam cercas altas e pontiagudas ou se produzirá uma invasão migrante. Ou bem se baixam os salários e desmantelam os direitos sociais ou as empresas marcharão para outro lugar com o trabalho. Isolado em frente a sua tela, o espectador é refém da alternativa entre dois males. Como escapar?

    Não se trata de “crítica”. De fato, o espectador pode ser muito crítico, assistir por exemplo indignadíssimo – como todos nós hoje – ao espetáculo da corrupção, gozar vendo rodar as cabeças dos poderosos etc. Porém isso não muda nada. Seguimos na posição espectadora: vítimas da situação, reduzidos ao juízo moral, às generalidades (“são todos corruptos”, a “culpa é do sistema”) e à espera de que alguém “solucione” o problema.

    Saímos da posição espectadora quando nos tornamos capazes de pensar e atuar. E nos tornamos capazes de pensar e atuar produzindo o que os autores chamam um “agarramento” ou um “ponto de apoio”. Ou seja, um espaço de pensamento e ação a partir de um problema concreto. Nesse momento já não estamos diante da tela, opinando e à espera, mas envolvidos numa “situação de luta”. Tanto hoje quanto ontem, são essas situações de luta que criam novos enfoques, novos possíveis e põem a sociedade em movimento.

    Sem pensamento nem criação é impossível que haja alguma mudança social substancial e o mal (a corrupção ou qualquer outro) reproduzirá seus efeitos mais tarde ou mais cedo. Nesse sentido, enquanto bloqueia o pensamento e a criação, a sociedade do espetáculo é uma sociedade presa, um caracol infinito dos mesmos problemas.

     

    Situação de luta

    Não se abre uma situação de luta porque se sabe, mas precisamente para saber. Não se cria uma situação de luta porque tomamos consciência ou finalmente aberto os olhos, mas para pensar e abrir os olhos em companhia. A luta é uma aprendizagem, uma transformação da atenção, da percepção e da sensibilidade. O mais intenso, o mais potente.

    Os autores apresentam vários exemplos: por exemplo, a luta dos medicamentos anti-AIDS. Em 2001, 39 empresas farmacêuticas mundiais, sustentadas por suas associações profissionais, abrem processo contra o governo sul-africano que garantia a disponibilidade a custo moderado de medicamentos para a AIDS. A alternativa infernal então dizia: ou tem patentes e preços altos ou é o fim da pesquisa. O progresso tem um custo e um custo.

    Porém as associações de pacientes de AIDS saem de seu papel de vítimas e politizam a questão que lhes afeta: pesquisa, disponibilidade dos medicamentos, direitos dos enfermos, relação com os médicos. Pensam, criam, atuam. Suscitam novas conexões com associações humanitárias, outros afetados, empresas farmacêuticas sensíveis, Estados favoráveis como o Brasil etc. Porque o mapa de uma situação de luta (os amigos e os inimigos) nunca está claro antes que se abra, senão que a luta o redesenhe.  Não há “sujeito político” a priori, a situação de luta o cria.

    A alternativa infernal perde força e os industriais acabam retirando sua demanda. Não porque os afetados lhes tenham oposto bons argumentos críticos, mas porque criaram nova realidade: novas legitimidades, maneiras de ver, sensibilidades, alianças. Numa situação de luta, nos dizem os autores, os diagnósticos críticos são “pragmáticos”, ou seja, inseparáveis da questão das estratégias e dos meios adequados. É definitivo, só se sai das alternativas infernais “pelo meio”: através de situações concretas, por meio de práticas, desde a vida.

    Podemos pensar o mesmo sentido das lutas dos últimos anos: da PAH até o Eu Sim Saúde Universal, passando pelos movimentos de aposentados e de mulheres. Uma situação de luta é o “intelectual” mais potente: não só descreve a realidade, como a cria, suscitando novas conexões, problematizando novos objetos, inventando novos enunciados. De fato, os intelectuais-portavozes (novos e velhos) surgem, muitas vezes, na ausência de situações de luta, para representar aos que não pensam.

    Sem situações de luta não há pensamento. Sem pensamento não há criação. Sem criação somos pegos pelas alternativas infernais e espetaculares. A representação se separa da experiência social. Só ficam os juízos morais, as generalidades e a espera. O zunzum cotidiano do espetáculo midiático e político, assim como nossas redes sociais.

     

    Que as pessoas pensem

    Hoje vemos crescer, um pouco por todas as partes, movimentos ultraconservadores. Como combate-los? A subjetividade que todos estes movimentos interpelam é a subjetividade espectadora e vitimista: “o povo sofrido”. A vítima critica, porém não empreende um processo de mudança; considera a algum Outro culpado de todos os seus males; delega suas potencias a “salvadores” em troca de segurança, ordem, proteção.

    Escutamos hoje em dia as pessoas de esquerda dizer: disputemos o vitimismo à direita. Façamos como Trump ou Salvini, porém com outros conteúdos, mais “sociais”. É uma nova alternativa infernal: fazer como a direita para que a direita não cresça. Um modo de reproduzir a catástrofe que, como dizíamos a princípio, está inscrita na própria relação espectadora e vitimizadora com o mundo.

    Em 1984, a uma pergunta sobre o que é a esquerda, o filósofo francês Gilles Deleuze respondia: “a esquerda necessita que as pessoas pensem”. A estas alturas me parece a única definição válida e a única saída possível. Não disputar com a direita a gestão do ressentimento, do medo e do desejo de ordem, mas sair da posição de vítimas. Que as pessoas pensem e atuem, como se fez durante o 15M, a única barreira contra a direitização que funcionou durante anos neste país.

    Deixar de repetir que “as pessoas” não sabem, que as pessoas não podem, que não têm tempo nem luzes para pensar ou atuar, que não podem aprender ou produzir experiências novas, que só podem delegar e que a única discussão possível – entre os “espertos”, claro, entre os que não são “as pessoas” – é sobre que modos de representação são melhores que outros. Há muita direita na esquerda.

    Que as pessoas pensem: não convencer ou seduzir as pessoas, consideradas como “objeto” de nossas pedagogias e nossas estratégias. Abrir processos e espaços onde apresentar juntos nossos próprios problemas, tecer alianças inesperadas, criar novos saberes. Aprender a ver o mundo por nós mesmos, ser os protagonistas de nosso próprio processo de aprendizagem.

    Pensar é o único contra-feitiço possível. Implica ir mais além do que se sabe e começa por assumir um “não saber”, arriscar-se a duvidar ou vacilar. É a arte de liberar a atenção de sua captura e volta-la para a própria experiência. Por no corpo, precisamente o que falta à posição de espectador, de tertuliano, de comentarista da política, de polemista nas redes sociais.

    Seguramente necessitamos uma nova poética política. Por exemplo, uma palavra nova para falar de luta, que associamos muito rapidamente à mobilização, à agitação ativista, a um processo separado da vida etc. Reinventar o que é lutar. Na realidade uma luta é um presente que nos damos: a oportunidade de mudar, de nos transformar ao mesmo tempo que transformamos a realidade, de mudar de pele. Não há muitas.

    Uma situação de luta não é nenhum caminho de salvação. Assim só a vê o espectador, que se relaciona com tudo de fora. De dentro, é uma trama infinitamente frágil, muito difícil de sustentar e avivar. Mas também é esse presente. A ocasião de aprender, junto a outros, de que está feito o mundo que habitamos, de estendê-lo e nos estender, de prova-lo e nos provar. Para não viver e morrer idiotas, ou seja, como espectadores.

    (1) x tradutxr do texto do Amador optou por traduzir \”feitiço\” por \”fascínio\”. Alteramos aqui para o conceito originalmente adotado por Stengers e Pignarre, \”feitiço\” e \”feitiçaria\”.

  • Brasil Casa-Shopping Cidade Jardim

     

    por: Ricardo Belano *

     

    Há alguns dias tomei o trem do Grajaú, pela Marginal do Rio Pinheiros, até a estação Cidade Universitária. Ao longo do caminho, pensando na crise política, econômica e social na qual se insere o país, avistei, do outro lado da marginal, o Shopping-Condôminio Cidade Jardim.

    Conhecido por ser o metro quadrado mais caro do país, a construção faraônica, em estilo grotesco-neoclássico combina um enorme shopping quadrangular, ao qual apenas se chega de carro, e sobre o qual se sobrepõem uma série de torres pareadas. Um formidável obra arquitetônica, que em tudo contrasta com o seu entorno: uma das vias mais barulhentas da cidade, com elevados índices de acidentes automobilísticos, de frente a um rio poluído e fedorento, e cercado por residências de pessoas em situação de pobreza extrema.

    Eis um retrato do Brasil. Mais do que um retrato; um modelo de país.

     

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    Modelo este que vem sendo minuciosa e detalhadamente articulado pelo governo Temer, em oposição aos ganhos democráticos e sociais acumulados pela série histórica composta pela tríade FHC-Lula-Dilma. Parênteses: pese as não pouco importantes diferenças entre os governos mencionados, todos os índices sociais como expectativa de vida, analfabetismo e mortalidade infantil melhoraram durante eles.

    Economistas, cientistas sociais e militantes não hesitaram em contestar o plano do governo Temer de congelamento dos gastos com saúde e educação por vinte anos. Afirmavam que com a população em crescimento, o congelamento orçamentário implicaria, na prática, em uma redução do valor, e não manutenção, e geraria uma situação caótica para a próxima geração. Erraram! Não foi necessário mais de dois anos para a população sentir os primeiros efeitos: faltam vacinas no país, o sarampo e raiva humana voltaram a ser uma realidade, o índice de mortalidade infantil, que desde o governo Collor apenas caía, voltou a subir. Os efeitos superaram, em muito, a velocidade dos mais descrentes nas medidas apocalípticas de Temer.

    A Reforma Trabalhista, o desinvestimento programático em cultura e educação, o desmonte da Funai, o aumento das verbas para segurança pública, a intervenção militar no Rio de Janeiro, as tentativas de avanços de privatizações em setores de infraestrutura e saúde, não podem ser lidas como um acaso. São um projeto muito bem articulado. Teve até Ministro da Agricultura, Blairo Maggi, defendendo o fim do combate ao trabalho escravo.

    O projeto de país, o legado que o Governo Temer nos deixa – e que está sendo abertamente defendido nessas eleições – é o de um mundo forjado em todas as suas facetas nos moldes da competitividade absoluta, numa guerra de todos contra todos em busca de suas formas de sobrevivência. Nesse projeto de país, apenas duas instituições possuem a legitimidade de atuação social: o mercado, em primeiro lugar, e a polícia, quando o primeiro falha.

    Formação de classe média, acesso à educação, à cultura, incentivos para a formação de pessoas com habilidades múltiplas para trabalhos e exercício da sua vida pública; tudo isso ficou para o passado. O ideal de sucesso do governo Temer é o Casa-Shopping Cidade Jardim: a riqueza de muitos poucos, com seus privilégios absolutos e incontestável poder de mando, cercado por uma cidade suja, intoxicada e violenta. Preferencialmente, fazendo a gestão desde Miami, via Whatsapp, tendo apenas que vir para São Paulo para reuniões pontuais.

    *Ricardo Belano é escritor e adepto à técnica de conhecer pelos abismos

     

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  • peço forças porque não temos armas

     

    por:  Clarissa Reche

    Fecho os olhos e peço ajuda. Pra quem? Com quem eu falo? Me sinto doente. Meu corpo dói e meus olhos tem uma sensação estranha, como se eu tivesse chorado por horas. Mas não chorei. O choro não sai e me pego apertando os dentes com força, mandíbula contra mandíbula, sufocando o grito e nutrindo o nó que me afoga. Fecho os olhos e peço força. Pra quem? Não falo com Deus, definitivamente não. Deus é um homem barbudo de pele clara que olha pra mim lá de cima. Não, Deus não.

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    Estou sozinha e num desespero silencioso peço um sinal. Pra quem? Saio do trem. Atravesso a ponte erguida sobre o manto duro pelo qual os carros aceleram rápido. Eles tentam sair correndo. Eles tentam fugir o mais rápido que podem. Querem velocidade e não importa o sangue derramado. E eles se entorpecem de sangue e querem velocidade. Rápido eles enxergam muito pouco do desastre que os acompanha ao lado, não querem ver as águas podres que são o espelho da inexistência do que eles chamam de progresso. Para os mais pobres fica o cheiro, na impossibilidade de se fechar completamente em uma bolha móvel com ar condicionado. Estação Morumbi. Meio dia e vinte e três. Não sei pra quem peço, mas peço ajuda. Me sinto uma refém submetida a planos de homens ruins netos de homens ruins. E penso que eles têm armas. Muitas armas, armas grandes, armas russas e israelitas. Armas de guerra e munições de guerra. Sigo andando no calor, no sol que toca o solo estéril de concreto lisinho e limpinho. O sol, que não se importa com a ridícula tentativa de imitação de um cenário homogêneo de lugar-onde-a-grana-rola. O sol, que impõe toda sua tropicalidade para essas hordas de coitados engravatados. São muitos. Horário de almoço. Todos envoltos numa bizarra atmosfera de felicidade histérica. Não sei pra quem peço, mas peço forças porque não temos armas. Nós não temos nada e cada vez temos menos. Pelo menos tenho a mim mesma, penso enquanto navego no cardume de engravatados que, apesar das tentativas ridículas de viver no progresso, estão pingando suor nos únicos poucos minutos por dia que ficam diante do sol. Na hora do almoço. Numa felicidade histérica. Penso nos meus amigos e nos seus trabalhos. Humilhados não podem fazer muito mais do que sobreviver, constantemente ameaçados de morte, chantageados e coagidos a entregar suas dignidades humanas vendendo seus corpos a troco de quase nada. Porque precisam. E tentam não enlouquecer. Não sei pra quem peço, mas peço um sinal. Nesse canto infértil e podre da cidade. Nessa caricatura de progresso. Em meio a tantas pessoas doentes cujas vidas foram infertilizadas e apodrecidas pela escravidão que o rio não esquece e que permanece, agora cristalizada em um monumento gigantesco de vidro espelhado. Fortaleza que faz questão de mostrar sua imensidão e que ao mesmo tempo repele qualquer mínima tentativa de penetração. É preciso evitar o contágio. Peço ajuda. Peço força. Peço um sinal. Meu amigo me contou que os entregadores são obrigados a entrar nos prédios pelas docas e a subir pelos elevadores de serviço feitos de maderite. Entrar e sair sem ser visto. É preciso evitar o contágio. Uma refeição que ele entrega custa o triplo do que ele ganha em um dia inteiro. O sol, o cheiro, o suor, as pessoas engravatadas rindo, mais dez minutos de almoço, histéricas, felizes, doentes, vendidas e compradas por quase nada. E meu nó na garganta. Eu tenho ele porque tenho a mim, e pelo menos isso eu tenho! Mas sozinha é muito difícil. Peço para algo amorfo e sem sentido, difuso e que talvez por isso mesmo que insisto em pedir. Peço pela horda suada, por mim, por minha irmã e meus pais, pelos meus amigos e pelos moleques que limpam roda de carro importado no farol.

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    Um suspiro arranca de mim a certeza de que peço para algo muito antigo, para uma história vergonhosa que o concreto lisinho e limpinho tenta esconder mas que invade meu corpo e o toma sem pedir minimamente licença. É o cheiro do rio. Peço para o sangue. Peço para a ousadia das vidas vividas em sua plenitude. Peço pelas vidas, para que sejam vividas plenamente. Mas não temos armas de guerra nem munições de guerra. Temos apenas nós (nas gargantas). Temos apenas uns aos outros. Mas pelo menos temos isso.

    fotos:  As fotos são de um ensaio que dei o nome de lua nova. Tirei as fotos com o microscópio que eu mesma construí, observando meu sangue menstrual.